Tudo pede salvação
Série italiana disponível na Netflix põe em jogo limites entre loucura e normalidade
É manhã de domingo. Um jovem acorda na ala psiquiátrica de um hospital sem saber porque foi parar lá. Internação compulsória de uma semana. Depois de breve convivência com pacientes que apresentam diferentes “níveis de loucura”, memórias começam a emergir e os dias inicialmente angustiantes pouco a pouco se covertem em uma experiência de transformação.
Essa é a síntese da série italiana Tutto chiede salvezza ou Tudo pede Salvação, como é chamada em português, disponível na Netflix. Baseada em vivências reais do próprio autor, Daniele Mencarelli, descritas em livro homônimo, a série conta com apenas sete episódios, um para cada dia de internação. Nela, o protagonista Daniele – em interpretação cativante do ator Federico Cesari – repensa a própria vida, que até então parecia estar dividida entre relações superficiais e o abuso de drogas lícitas e ilícitas.
Não se trata de uma série com grandes emoções, reviravoltas ou artifícios de roteiro para imprimir maior comoção, surpresa ou expectativa e, assim, fisgar o público. A intensidade aparece mesmo na crueza da vida comum, característica mais frequente em produções audiovisuais europeias.
Na série, não há mocinhos ou vilões. Até mesmo os pacientes – que supostamente estariam em uma categoria diferenciada, a dos loucos – paulatinamente vão mostrando que, antes e apesar dos transtornos, são simplesmente humanos como todos os demais, com seus desejos, dores e conflitos. Penso que aí está o ponto forte da série, desmistificar um pouco o estigma da loucura apenas como doença e situá-la também como uma resposta que cada sujeito encontra para lidar com os conflitos da própria existência. “De perto, ninguém é normal”, já reforcei em coluna anterior.
Paralelos à trajetória do protagonista, não faltam dramas humanos.
Tem personagem internado pelo próprio pai, um militar de alta patente, tão somente por ser homossexual [uma boa e triste metáfora para o nosso Brasil atual, cheio de gente que não sabe lidar com as diferenças e apela para a repressão, sob suposto amparo de um pai onipontente, mitológico ou transcendente. Ainda bem que a terra é redonda e gira].
Uma jovem atriz, famosa mas de talento duvidoso, não suporta a pressão da vida de aparência e a sanha dos haters. Acaba internada. Por quem? Pela própria mãe, que inventa uma viagem fictícia para esconder do público o real motivo do sumiço temporário. A propósito, esconder o sofrimento é um sintoma contemporâneo. Neste tempo em que se exige alto desempenho em tudo, lamentavelmente qualquer sinal de vulnerabilidade é considerado fracasso. Também já falei disso na coluna “Menos heróis, mais humanos”.
Mesmo entre os personagens “não internados”, a vida não se mostra isenta de conflitos. A solidão densa, silenciosa e enigmática de um dos médicos; a história incessantemente repetida pelo pai que não consegue avançar diante da imobilidade do filho; amor e rancor velados e mal resolvidos entre enfermeiros; pais e mães que sofrem com filhos que desmontam suas expectativas… Tudo é vida e o limite entre saúde e doença, loucura e normalidade, vai sendo borrado.
Afinal, entre os que expõem sua “loucura” e os que calam ou “controlam” suas dores e conflitos, quem é mais saudável?
Eu poderia trazer inúmeros outros elementos a essa reflexão, mas prefiro sugerir que você assista à série e tire suas próprias conclusões. E já vou antecipando. No fim, o amor vence. Clichê? Não, se também o amor aparece imperfeito, tanto quanto a vida e cada um de nós.
Fábio Cadorin é psicólogo, jornalista, professor e doutor em Ciências da Linguagem. Nesta coluna quinzenal fala sobre saúde mental e impactos da cultura sobre o psiquismo.