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Autêntico, a palavra do ano

Quem eu sou é mais questão de inventar do que descobrir

Já pensei diferente, mas hoje não creio mais que exista em mim ou em qualquer pessoa o que se costuma chamar de “essência”. Na posição de analista e depois de um bom percurso de análise pessoal, entendo que quem eu sou muda com o tempo, com o modo como lido com as vivências, com os bons e maus encontros, com as dores e delícias de existir.

Quem eu sou é mais questão de inventar do que descobrir. Na perspectiva psicanalítica, a única coisa que talvez ainda possa ser chamada de essencial na experiência humana é o desejo. Ele, sim, é indestrutível. A diferença da noção desse desejo para o conceito do senso comum é que, no primeiro caso, não existe um objeto específico capaz de satisfazer plenamente o desejo. O objeto está por ser inventado e a possibilidade de uma criação original e singular para cada sujeito é o que torna a vida interessante. Sendo impossível a plena satisfação, essa busca anima a existência.

Acontece que estamos caindo no engodo de uma suposta possibilidade de plena satisfação, em que as faltas e falhas inexistem. As rugas apareceram na foto da rede social? O filtro dá um jeito. O ambiente tem um lado menos interessante? Fica fora do enquadramento. A realidade não agrada? Dá-lhe ficção.

A tecnologia abriu portas para um novo mundo. Possibilita um avanço inimaginável e positivo em muitas áreas. Mas jamais estivemos tão expostos ao que é fake. Já não somos mais capazes de saber com certeza se o conteúdo a que acessamos tem origem na mente humana ou é fruto de alguma inteligência artificial.

Editores de dicionários pelo mundo afora costumam eleger palavras que melhor representam o ano que passou. “Autêntico” foi a palavra escolhida para representar 2023 pelo dicionário americano Merriam-Webster. Isso porque foi também um termo amplamente usado em pesquisas online. Diante de tantas criações por IA, usuários se viram mais impelidos a investigar a autenticidade de conteúdos no ambiente virtual.

Relacionando ao desejo, parece que está ficando cada vez mais difícil conviver com os furos da existência. É como se, em certa medida, a autenticidade estivesse em xeque. Se algo falta no mundo físico, a realidade aumentada resolve. Se o próprio mundo não é suficiente, fazemos um metaverso.

Repito: a tecnologia em si pode ser um grande bem. Minha crítica é metafórica. A sanha de tapar todos os buracos demonstra que não estamos sabendo lidar com a falta.

De fato, a exposição a um mundo idealizado parece amplificar as nossas falhas, deficiências, carências. Querer minimizar as falhas não é um problema. Esforçar-se para alcançar um ideal não é um problema. Isso pode até ser estimulante. O problema é lutar por ideais sem furos.

Reconhecer e admitir que não dá para viver sem faltas pode ser apaziguador. A incompletude abre algum espaço para que o ar entre e se possa respirar. Permite o movimento. Permite, portanto, a vida, que é movimento. Se você é humano, ou tem faltas ou não é autêntico.

Vamos fazer um 2024 mais autêntico?

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  1. Nas próximas semanas, farei uma pausa na coluna. Retorno no início de fevereiro. Até lá!

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Fábio Cadorin (@fabiocadorin) é psicólogo, jornalista, professor e doutor em Ciências da Linguagem. Nesta coluna fala sobre saúde mental e impactos da cultura sobre o psiquismo.

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