Senta que lá vem história – História de cães heróis: Balto e Togo e a cidade de Nome
Hoje vou começar minha coluna indicando de cara um filme, o que normalmente deixo pra sugerir no final, quero iniciar falando desse filme que narra um ato de heroísmo durante um surto. O filme se chama “Togo”, um dos sucessos reais mais cativantes dos Estados Unidos e prova como os cachorros são capazes de fazer coisas incríveis. Essa história foi tão mediática que a aventura protagonizada por Balto se converteu em filme, em 1995, narrando sua história. Entretanto, outras versões contam que o verdadeiro herói foi Togo, e que você pode conferir na plataforma de stremming Disney+.
No pico do inverno, uma doença mortal atinge as crianças de uma pequena cidade no Alasca, uma cidade cercada por um mar gelado e um deserto coberto de neve. A única esperança dos habitantes residia num plano modesto que passava pelo resgate de medicamentos de uma estação ferroviária que ficava a centenas de quilômetros de distância, para além das montanhas, através de enseadas congeladas e durante uma tempestade… um plano que envolvia trenós puxados por cães.
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Mas esta fábula não é ficção. A Corrida ao Soro de 1925, como é chamada por quem a conhece, foi um evento com importância suficiente para merecer uma estátua no Central Park de Nova York. Nessa época, a corrida All-Alaska Sweepstakes era muito popular e decorria desde Nome até Candle, o que correspondia a 657 quilômetros, sem contar com o retorno.
Nome em 1916. A população de Nome aumentou exponencialmente em 1899, quando foi encontrado ouro. A localidade tornou-se cidade em 1901, com cerca de 12.500 habitantes.
A cidade de Nome, no alto da costa oeste do Alasca, no Mar de Bering, é uma cidade fronteiriça construída à volta do ouro e do comércio de peles. Fundada em 1901, Nome está mais perto da Sibéria do que da maior cidade deste estado norte-americano, Anchorage. E esta localização remota apresentaria um cenário de pesadelo quando, em 1925, uma doença começou a assolar as crianças da cidade. Quando as autoridades descobriram que não se tratava apenas de um caso grave de amigdalite, já era tarde demais; era difteria.
A difteria, uma infeção bacteriana contagiosa que ataca o sistema respiratório superior e provoca inchaço nos tecidos da garganta, pode ser mortal. Foi o que aconteceu em Nome, no final de dezembro, quando duas crianças de Iñupiaq sucumbiram à doença, e assim descobriram que as únicas reservas de antitoxina disponíveis no pequeno hospital já tinham passado da validade. No dia 24 de janeiro, sabia-se que quatro crianças tinham morrido – mas presume-se que nas comunidades vizinhas do Alasca morreram mais. Num telegrama enviado para Anchorage, o médico de Nome, Curtis Welch, que tinha implementado uma quarentena, enviou um pedido para o envio de um milhão de unidades de antitoxina – afirmando que “uma epidemia de difteria é quase inevitável”.
Na história do Alasca, o surto de difteria de 1925, em Nome, foi apenas um de uma série de epidemias na região. Nome e as aldeias indígenas vizinhas foram de longe as comunidades mais afetadas pela pandemia de gripe de 1918 e 1919 – a chamada “gripe espanhola”. Morreram centenas de pessoas na região, incluindo bebês que morreram congelados ao colo das mães que não resistiram à gripe, e este horror, apenas sete anos antes, estava bem vivo na memória de todos – e certamente na mente dos habitantes de Nome, enquanto assistiam à propagação de difteria entre os seus filhos.
Na pequena cidade Nome não existia a vacina antidiftérica, as temperaturas rondando os -30ºC, uma das piores condições de inverno em décadas, ficou claro para as autoridades da cidade que o transporte de um pequeno mantimento de antitoxinas para o Alasca através de meios convencionais seria muito lento ou impossível, antes de a doença assolar toda a cidade. O porto estava congelado e os aviões não podiam voar em segurança no frio, muito menos aterrar. Sem nenhuma outra forma de atravessar os 1080 quilômetros que separavam Nome da estação ferroviária de Nenana – uma rota que normalmente os correios demoravam um mês a atravessar – as autoridades voltaram as suas atenções para um criador de cães e campeão de corridas de trenó chamado Leonhard Seppala.
O norueguês Leonhard Seppala fracassou na prospeção de ouro e virou as suas atenções para a criação e treino de cães de trenó. No filme Togo, é interpretado pelo ator norte-americano e nomeado ao Oscar Willem Dafoe.
A própria história de Seppala estende-se ao longo de muitos quilômetros. Este imigrante norueguês, conhecido por Sepp, tinha viajado originalmente para o Alasca à procura de ouro, e trabalhou numa mina de ouro. Desiludido com o trabalho, começou a trabalhar por conta própria, fazendo a manutenção das valas de água da mina e transportando mercadorias e passageiros entre os campos com trenós puxados por cães.
Estimulado pelo trabalho, e encarregado da formação e manutenção de cães na mina, Seppala encontrou a sua vocação. Graças à ligação que mantinha com o proprietário da mina, Seppala foi contratado para treinar uma equipe de cães de trenó para uma expedição que tinha como objetivo chegar ao Polo Norte a partir do Alasca – feita pelo explorador norueguês Roald Amundsen. Quando surgiu a ameaça da Primeira Guerra Mundial, a expedição foi abandonada – e os cães treinados para a expedição foram oferecidos a Seppala.
Leonhard Seppala fotografado com os seus “Corredores Siberianos” em 1916 (em cima) e em 1923 com o explorador norueguês Roald Amundsen. Amundsen foi o homem que derrotou Robert Falcon Scott na corrida para chegar à Antártida em 1911 – e para quem, em 1914, Seppala tinha treinado uma equipe de cães para uma expedição ao Polo Norte. A expedição foi cancelada e Seppala foi presenteado com os cães.
As corridas de trenó eram uma atividade colateral natural para quem trabalhava com cães – e que envolviam não só os malamutes-do-alasca, ou husky (uma adaptação de esky, abreviatura para esquimó), como os cães siberianos mais leves que foram levados para o Alasca pelos Chukchis em 1908. Apreciados pela sua resistência e inteligência, o vigor e a capacidade de propulsão destes cães tornaram-nos no mecanismo perfeito para atravessar terrenos inóspitos. Os cães destinados à expedição de Amundsen eram huskies siberianos, e Sepp – agora na posse da sua própria equipe de cães – começou a competir nas corridas do Alasca. A partir de 1915, Seppala venceu três All Alaska Sweepstakes consecutivas, uma corrida de 656 quilômetros em terreno aberto entre Nome e Candle, seguindo a rota da linha telegráfica. As vitórias de Seppala foram creditadas aos seus cães de estatura mais leve – “ratos siberianos”, como eram amarguradamente chamados pelos outros concorrentes. Isso e os instintos do cão à frente do arnês que, para Seppala, rapidamente se iria evidenciar.
O verdadeiro Togo (esquerda) vive na linhagem dos huskies siberianos de Seppala – os proprietários geralmente tentam rastrear a genealogia dos seus cães até ao seu antepassado heroico. Um destes cães, Diesel (direita), um husky siberiano de 5 anos de idade que é descendente direto de Togo, aparece no filme.
Com um nome que homenageia Heihachiro Togo, um famoso almirante japonês, Togo nasceu em 1913, e nas corridas de cães de trenó não parecia ser inicialmente muito promissor. Togo tinha uma cor manchada que fazia o seu pelo parecer sujo, e quando era pequeno foi cuidado pela esposa de Seppala, Constance, devido a uma condição na garganta: circunstâncias que podem ter resultado na sua constituição mais pequena, e na disponibilidade incondicional e lealdade profundamente enraizada para com o seu dono. Togo fugia frequentemente para correr atrás de Seppala, quando este ia trabalhar nos treinos de cães ou fazer outras tarefas. Considerado um incômodo, foi entregue aos sete meses de idade a uma amiga como animal de companhia, mas Togo fugiu novamente e regressou para casa. Nesse momento, Seppala reparou numa virtude do cão: a sua determinação e talento para encontrar a distância mais curta entre dois pontos.
Cansado das fugas constantes de Togo, Seppala deixou-o finalmente correr com a equipe – primeiro na parte de trás da matilha, e depois subindo até atingir a liderança, onde Togo acabou por brilhar. Os dois iriam tornar-se inseparáveis – e nos anos que se seguiram, em várias expedições, salvariam a vida um do outro.
Quando ocorreu o surto de difteria, Seppala já era famoso por todo o Alasca, e era conhecido como o “rei dos trilhos” – com o astuto e diminuto Togo igualmente venerado. Na noite de 24 de janeiro de 1925, Seppala foi convocado pelas autoridades de Nome para liderar aquilo que muitos dos subsequentes títulos de jornais, ficaria conhecido por “A Grande Corrida de Misericórdia”. Vinte guias construíram, então, um sistema de revezamento que tornou possível o translado das vacinas e se comprometeram a realizar um trajeto perigoso, para o qual utilizariam mais de 100 cachorros de trenó. Eles conseguiram transladar o material de Anchorage até Nenana, uma cidade mais próxima de Nome, a 778 quilômetros de distância.
Leonhard Seppala, liderou sua equipe de cães guiada pelo líder do Togo. Os perigos eram consideráveis. Eles tiveram que viajar o trecho mais longo e perigoso desta jornada. Com Seppala encarregado das secções mais traiçoeiras a partir de Nome, ele seria forçado a atravessar a costa de Norton Sound – que tem o apelido arrepiante de “fábrica de gelo”. Este atalho, que era a secção mais perigosa do percurso e estava repleta de ventos fortes e blocos de gelo instáveis que eram afiados como uma navalha. Era uma secção que muitos conheciam, mas que só Seppala, com os instintos de Togo para o perigo e terreno acidentado, conseguiam atravessar. Mas mesmo assim era uma tarefa difícil: Togo já tinha 12 anos nessa altura.
Seu papel foi fundamental na missão, pois este atalho que atravessaria uma baía congelada economizaria um dia de viagem. Naquela área o gelo era extremamente instável, a qualquer momento poderia se quebrar e deixar toda a equipe em perigo. Mas a verdade é que Togo conseguiu guiar com sucesso a sua equipe durante os mais de 500 km deste perigoso trajeto.
Seppala partiu no dia 27 de janeiro. À medida que o surto e as condições pioravam, e sem que Seppala soubesse, os planos já de si difíceis de concretizar foram alterados a meio do caminho – muitas vezes com riscos consideráveis de se perder um encontro entre as equipes de estafetas nas cabanas rústicas, que eram a única zona de pausa no trajeto. Foram acrescentadas equipas adicionais para aliviar a tensão e acelerar o trânsito dos medicamentos – ampolas embrulhadas em peles e seladas dentro de um recipiente de metal – à medida que o surto piorava em Nome.
Entre temperaturas congelantes, ventos com força de furacão e tempestades de neve, vários cães de alguns dos grupos morreram. A viagem de 1080 quilômetros da antitoxina demorou cinco dias e meio, 127 horas e meia – um recorde mundial. Este recorde foi enfatizado pela recente chegada do rádio à região centro da América, tornando a história do soro num fenômeno. Em Nome, morreram apenas cinco ou sete pessoas – embora o número de mortes fora da cidade não tenha sido registado e provavelmente tenha sido maior. No entanto, estava claro que se tinha milagrosamente evitado um mal maior. A história ficou famosa – e os seus heróis também.
A equipe encarregada de cobrir o último trecho e entregar o remédio na cidade foi comandada pelo musher Gunnar Kaasen e seu cão-guia Balto no dia 2 de fevereiro. Por este motivo, este cão foi considerado um herói em Nome e em todo o mundo. Balto era um cachorro misturado com husky siberiano.
Mas por outro lado, no Alasca, todos sabiam que o Togo era o verdadeiro herói e, anos depois, foi revelada a verdadeira história. Todos os cães que empreenderam aquela difícil jornada foram grandes heróis, mas Togo foi, sem dúvida, o principal protagonista por ter guiado sua equipe no trecho mais difícil de toda a jornada. No total de ida e volta, Togo percorreu 420 quilômetros; Balto, pouco mais de 160.
O público precisava de algo para venerar – e sendo a costa de Nome fotogénica, a imprensa garantiu que Kaasen e Balto seriam os sujeitos dessa veneração. Foram as suas imagens que apareceram nas primeiras páginas dos jornais e foram os seus nomes que se transformaram em lenda – eclipsando de certa forma não só Togo e Seppala, mas também as outras 18 pessoas e cerca de 150 cães que participaram na tarefa.
Infelizmente, Balto foi vendido, tal como os outros cachorros, ao zoológico de Cleveland (Ohio), onde viveu até completar 14 anos. Morreu no dia 14 de março de 1933. O cachorro foi embalsamado e, atualmente, podemos encontrar o corpo dele no Museu de História Natural de Cleveland, nos Estados Unidos.
Desde então, em todos os meses de março, se celebra a corrida de cães de Iditarod. O trajeto vai desde Anchorage até Nome, em memória da história de Balto e Togo, os cães-lobo que se tornaram heróis, assim como a de todos os outros que participaram nessa perigosa corrida.
A repercussão midiática da história de Balto foi tão grande que decidiram erguer uma estátua no Central Park, Nova Iorque, em sua homenagem. A obra foi feita por Frederick Roth e dedicada exclusivamente a este herói de quatro patas, que salvou a vida de muitas crianças da cidade de Nome, o que é até hoje é considerado um tanto quanto injusto com Togo. Na estátua de Balto na cidade estadunidense, podemos ler:
“Dedicada ao espírito indômito dos cães da neve que conseguiram transportaram a antitoxina ao longo de quase mais de mil quilômetros de gelos ásperos, água traiçoeiras e tormentas de neve ártica em Nenana para levar alívio ao desolado povo de Nome durante o inverno de 1925.
Resistência – Fidelidade – Inteligência”
A questão em torno da estátua de Balto em Central Park também continua a ecoar. Em finais de 2019, a Change.org iniciou uma petição para se substituir a estátua de Balto por uma de Togo. Noutra zona de Nova Iorque, há uma pequena estátua de Togo de 2001, em Seward Park – parque que homenageia William Seward, Secretário de Estado dos EUA que comprou o Alasca à Rússia em 1868 – que foi recentemente transferida para uma posição mais proeminente, uma ação integrada num processo de renovação do parque.