VocĂȘ conhece o costume do sono duplo?
Adotado durante a era pré-industrial, o costume do sono duplo hoje é praticamente esquecido pela história
Essa curiosidade deve-se a celebração da Semana do Sono, que acontece no mesmo perĂodo do World Sleep Day (Dia Mundial do Sono), que este ano aconteceu nesta sexta-feira, dia 15 de março. O Dia Mundial do Sono, Ă© uma iniciativa global dedicada a conscientizar e destacar a importĂąncia do sono saudĂĄvel. Celebrado anualmente, este evento busca sensibilizar a sociedade sobre questĂ”es relacionadas ao sono e seus impactos na saĂșde fĂsica e mental.
Muitas pessoas gostam de tirar uma soneca no meio do dia, porĂ©m a maioria de nĂłs costuma dormir tudo que precisa de uma vez sĂł, com vĂĄrias horas de sono Ă noite. Mas vocĂȘ sabia que esse hĂĄbito Ă© relativamente recente? Durante centenas de anos, muito antes de começar a era industrial, diversas comunidades e sociedades do planeta utilizavam uma metodologia de descanso um tanto surpreendente e esquecida atualmente. AtĂ© o sĂ©culo 19, o mais comum era dormir duas vezes.Â
O hĂĄbito dos “dois sonos”, popular especialmente durante a Idade MĂ©dia, tambĂ©m era chamado de âsono duploâ ou âsono bifĂĄsicoâ, e foi presente na humanidade por milĂȘnios atĂ© ser abandonado durante a Revolução Industrial. Isso quer dizer que as pessoas dividiam a noite em dois turnos para dormir e realizar atividades, isso mesmo, o sono era em etapas.
Esse curioso processo sĂł foi compreendido no inĂcio dos anos 1990, quando o historiador Roger Ekirch resgatou documentos histĂłricos para escrever um livro sobre os hĂĄbitos noturnos ao longo dos sĂ©culos. Ele descobriu que registros de processos judiciais e investigaçÔes eram Ăłtimas fontes sobre os costumes de cada Ă©poca, por conta dos depoimentos. LĂĄ, Ekirch encontrou um relato que lhe deixou com “a pulga atrĂĄs da orelha”.
O depoimento de uma menina de 9 anos conta que ela e sua mĂŁe haviam acordado do primeiro sono da noite, quando alguns homens bateram Ă porta e ela saiu com eles â para nunca mais voltar. Duas palavras que nunca havia visto antes, mas que pareciam retratar um detalhe particularmente intrigante da vida no sĂ©culo 17. O termo âprimeiro sono” aparecia sem destaque, como se fosse normal na Ă©poca. Intrigado, Ekirch aprofundou suas pesquisas e descobriu referĂȘncias ao “primeiro sono” e ao “segundo sono” em cartas, diĂĄrios, artigos de jornal, romances e vĂĄrios outros escritos, desde a Antiguidade atĂ© a Idade Moderna. O sono bifĂĄsico era um fato histĂłrico.
âEram cerca de 11 horas da noite de 13 de abril de 1699, em uma pequena aldeia no norte da Inglaterra. Jane Rowth, com nove anos de idade, piscava os olhos, observando as sombras da noite escura. Ela e sua mĂŁe haviam acabado de acordar do primeiro sono. A mĂŁe de Jane levantou-se e andou atĂ© a lareira daquela casa simples, onde começou a fumar seu cachimbo. Foi quando dois homens surgiram na janela. Eles chamaram a Sra. Rowth para se aprontar e ir com eles.
Como Jane explicou mais tarde para um tribunal, sua mĂŁe claramente estava esperando os visitantes. Ela foi com eles sem resistir â mas antes sussurrou para sua filha: “fique deitada e estarei de volta pela manhĂŁ”. Talvez a Sra. Rowth tivesse alguma tarefa noturna a cumprir. Ou talvez ela estivesse em dificuldades e sabia que encontraria perigos ao sair de casa.
De qualquer forma, a mĂŁe de Jane nĂŁo conseguiu cumprir sua promessa e nunca mais voltou para casa. Naquela noite, a Sra. Rowth foi brutalmente assassinada e seu corpo foi encontrado dias depois. O crime nunca foi esclarecido.â
A existĂȘncia de um primeiro sono indica que havia tambĂ©m um segundo sono â uma noite dividida em duas metades. Era apenas um hĂĄbito familiar ou haveria algo mais, alĂ©m disso? Como isso funcionava? Por que as pessoas dormiam em dois turnos? E como algo que um dia foi tĂŁo comum acabou sendo completamente esquecido?
No primeiro sono, perĂodo chamado de âo relĂłgioâ, começava depois que anoitecia, ali pelas 21 horas, depois de 2 ou 3 horas descansando, as pessoas acordavam. Esse despertar geralmente nĂŁo era causado por ruĂdos, nem por outras perturbaçÔes Ă noite. TambĂ©m nĂŁo havia alarme para despertar â os despertadores foram inventados apenas em 1787, por um norte-americano que, ironicamente, precisava acordar no horĂĄrio para vender relĂłgios. As pessoas acordavam de forma totalmente natural, da mesma forma que faziam pela manhĂŁ.Â
Uma vez despertos, o perĂodo chamado de “vigĂliaâ, em que elas ficavam acordadas era tambĂ©m entre 2 e 3 horas, tempo este para realizar atividades Ășteis, como adicionar lenha ao fogo, resolver tarefas domĂ©sticas, tomar medicamentos e atĂ© realizar trabalhos rurais ou apenas para conversar com as pessoas da famĂlia. AlĂ©m disso, os filĂłsofos utilizavam estes intervalos de descanso para refletir sobre a vida e novas ideias. Os religiosos se dedicavam a praticar suas oraçÔes, e muitos casais o utilizavam para sociabilizar.
Um detalhe importante, Ă© que poucas pessoas se deitavam em um quarto, com uma cama e um colchĂŁo, como fazemos hoje. As pessoas, literalmente, dormiam onde podiam. Apenas os ricos tinham colchĂ”es recheados de penas de ganso. Quem tinha alguma condição, mas nĂŁo era da elite, virava-se com uma espĂ©cie de colchĂŁo de palha ou retalhos de tecido. Enquanto isso, nas camadas inferiores da sociedade, as pessoas precisavam acomodar-se sobre plantas espalhadas no solo ou, pior, no chĂŁo de terra batida â talvez atĂ© sem cobertor.
Naquela Ă©poca, muitas pessoas dormiam juntas, frequentemente acompanhadas de uma acolhedora variedade de percevejos, pulgas, piolhos, familiares, amigos, servos e â se estivessem viajando â tambĂ©m completos estranhos. Para minimizar constrangimentos, o sono envolvia uma sĂ©rie de convençÔes sociais rĂgidas, como evitar contato fĂsico ou muitos movimentos durante a noite. E havia posiçÔes definidas para dormir. As meninas mais jovens, por exemplo, normalmente deitavam-se em um lado da cama, com as mais velhas mais perto da parede, seguidas pela mĂŁe e pelo pai, depois os filhos meninos â tambĂ©m dispostos por idade â e os que nĂŁo eram membros da famĂlia depois deles. Durante essas estranhas horas de penumbra, as pessoas que dividiam a cama conseguiam compartilhar um nĂvel de informalidade e conversas casuais dificilmente atingido durante o dia.Â
Depois que as pessoas ficavam acordadas por duas horas, normalmente elas voltavam para a cama. Esse segundo perĂodo era considerado o sono “da manhĂŁ” e poderia durar atĂ© amanhecer ou mais. Depois de um longo dia de trabalho manual, o primeiro sono eliminava sua exaustĂŁo e o perĂodo seguinte era considerado um excelente momento para conceber sua enorme quantidade de filhos.
O sono bifĂĄsico nĂŁo era exclusivo da Inglaterra, ele era amplamente praticado em todo o mundo prĂ©-industrial. Na França, o sono inicial era chamado de “premier somme”, enquanto, na ItĂĄlia, era o “primo sonno”. EvidĂȘncias do hĂĄbito apontam atĂ© em locais distantes como a Ăfrica, sul e sudeste asiĂĄtico, AustrĂĄlia, Oriente MĂ©dio â e no Brasil. Um registro colonial do Rio de Janeiro, datado de 1555, descreve que o povo tupinambĂĄ costumava comer depois do seu primeiro sono.Â
O registro mais antigo encontrado no Ă©pico grego A Odisseia, data o costume jĂĄ no sĂ©culo 8 antes de Cristo, enquanto as indicaçÔes mais recentes dessa prĂĄtica datam do inĂcio do sĂ©culo 20, quando, de alguma forma, ela caiu no esquecimento. Essa adaptação de descanso nĂŁo Ă© estranha, jĂĄ que muitos animais possuem padrĂ”es de sono muito semelhantes aos humanos prĂ©-industriais. A prĂĄtica de dormir em duas metades desapareceu no inĂcio do sĂ©culo 19.Â
Como os “dois sonos” foram esquecidos?
Começamos rapidamente a ridicularizar as pessoas que dormem demais e desenvolvemos preocupação com a relação entre acordar cedo e a produtividade. Um efeito colateral importante da mudança dos hĂĄbitos de sono de grande parte da humanidade foi a mudança de comportamento. Tudo mudou durante a Revolução Industrial, que colocou as pessoas para trabalhar por mais horas por dia, alĂ©m de nos dar uma iluminação artificial mais eficiente, prevalente e poderosa, permitindo que as pessoas ficassem acordadas por mais tempo.Â
Mas essa poluição luminosa tambĂ©m alterou nosso ritmo circadiano, o que demonstra que seu sono foi alterado em nĂvel biolĂłgico. Os novos hĂĄbitos adotados pelas sociedades, somados Ă ansiedade, estresse e horĂĄrios de trabalho, mudaram para sempre a forma como dormimos. AlĂ©m disso, com a dependĂȘncia do relĂłgio, era preciso acordar na mesma hora no dia seguinte. A consequĂȘncia Ă© que nosso sono ficou mais concentrado e profundo â “um sono sĂł”, como Ă© atualmente. Esse processo de abandono do sono bifĂĄsico se estendeu pelo sĂ©culo 19 atĂ© que, no sĂ©culo 20, ninguĂ©m mais se lembrou de que o costume jĂĄ tinha sido diferente.
O sono bifĂĄsico ainda Ă© presente em certas comunidades que nĂŁo tĂȘm luz elĂ©trica e mantĂȘm esses padrĂ”es de sĂ©culos atrĂĄs. Isso quer dizer que o sono bifĂĄsico Ă© o natural e deverĂamos voltar para ele? NĂŁo necessariamente, agora nĂłs temos mais estrutura para uma noite de sono calma e longa. O que importa, de verdade, Ă© acordar descansado(a).
E aĂ, o que achou? Gostou de conhecer essa curiosidade peculiar sobre o sono duplo de nossos antepassados? Compartilhe em suas redes sociais. Agradeço imensamente pela leitura atĂ© aqui, e semana que vem tem mais! Siga-me nas redes sociais:Â
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