Deixar os filhos por mais tempo no videogame foi quase inevitável para muitos pais e mães durante a pandemia da Covid-19. Isolados em casa, crianças e adolescentes precisaram de distrações. Pais e mães, de um pouco de silêncio e tempo para o home office.
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Foi praticamente uma “estratégia de sobrevivência”, portanto, não quero fazer aqui qualquer julgamento. Porém, nunca é demais lembrar que a exposição excessiva aos jogos eletrônicos pode ter consequências bem negativas. Não por acaso a Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a considerar como transtorno o vício em videogames. O Gaming Disorder (Transtorno de Jogos Eletrônicos, em tradução livre) entrou na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11), lançada recentemente pela OMS.
A ideia aqui não é ser alarmista. Até porque a questão não é nova. Há muito tempo se discute os efeitos da exposição de crianças, adolescentes, jovens e até mesmo de adultos aos videogames. Já se comprovou que existem riscos, mas também benefícios. Na verdade, a maioria dos casos – cerca de 98%, segundo estudo publicado ano passado no Jornal de Psiquiatria da Austrália e Nova Zelândia – não vai chegar ao extremo de virar transtorno. Só que, se o risco existe, cabe o alerta, ainda mais neste tempo pandêmico.
Em linhas gerais, o que caracteriza o Gaming Disorder é a perda de controle sobre o tempo de jogo. Isso significa dar prioridade ao videogame a ponto de abrir mão de atividades básicas, como se alimentar e ir ao banheiro. Há casos de jovens e adultos que param de tomar banho, de estudar, de trabalhar e se isolam de familiares e amigos.
É mais raro isso acontecer com crianças e adolescentes, porque elas são menos independentes e acabam obedecendo aos limites impostos por quem cuida delas. Ainda assim, continuam valendo aquelas boas e conhecidas medidas de prevenção: regular o tempo de jogo e deixar o videogame em um ambiente da casa onde haja circulação de pessoas que podem exercer algum tipo de supervisão. Estimular a prática de atividades off-line também é sempre uma boa pedida.
Paralelamente aos cuidados de ordem prática, é possível abordar a questão sob diferentes perspectivas, desde o efeito dos jogos eletrônicos sobre a complexa biologia cerebral até as controversas estratégias mercadológicas para tornar essa prática “viciante”. Entretanto, há uma dimensão simbólica fundamental que faço questão de considerar.
O que leva alguém a se distanciar da realidade e optar por viver boa parte do seu tempo na fantasia dos jogos virtuais?
A pergunta se aplica a qualquer jogador, especialmente aos jovens e adultos. Freud, o criador da psicanálise, disse que é impossível enfrentar a realidade o tempo todo sem nenhum mecanismo de fuga. Diferentes culturas ao longo da história criaram seus mecanismos de escape. Mas, quando o sujeito encontra dificuldade para retornar à realidade e nela se firmar, talvez seja hora de contar com algum tipo de ajuda. O universo dos games pode ser fascinante, mas a vida “real”, com suas dores e delícias, costuma ser bem mais.
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Fábio Cadorin (@fabiocadorin) é psicólogo, jornalista, professor e doutor em Ciências da Linguagem. Nesta coluna quinzenal fala sobre saúde mental e impactos da cultura sobre o nosso psiquismo.