O céu não é o limite
Quando foi que perdemos a noção de que não somos nem podemos ter tudo?
Hoje compartilho um pequeno episódio da vida real para ilustrar um grande problema do nosso tempo.
Um amigo meu, ao felicitar seu coach que estava de aniversário, escreveu: “O céu é o limite para você”. Num genuíno desejo de agradar, meu amigo obviamente buscou uma linguagem coerente com o discurso dessa categoria profissional. Em resposta, o tal coach disse ter amado a mensagem, mas fez questão de colocar uma ressalva: “O céu não é o limite, é o começo do infinito”.
Quando foi que perdemos a noção de que não somos nem podemos ter tudo? De que nosso corpo, nossa mente e nossa vida têm limites? Claro que a lógica capitalista explica grande parte da questão, mas pela natureza da coluna prefiro focar nos efeitos perniciosos desse discurso sobre o nosso psiquismo.
Conheço bons profissionais de coaching e até mesmo já fiz uma formação na área. Mas uma passeada rápida pelas redes sociais é suficiente para perceber que parte significativa dos coaches extrapola qualquer nível de razoabilidade. E, o pior, ganha milhares de seguidores que saem por aí repetindo mantras de que “tudo é possível, basta querer”, “você só não conseguiu porque ainda não fez a coisa certa” ou mesmo, como no caso mencionado, nem o céu é o limite, porque você é capaz de seguir rumo ao infinito.
Não sou pessimista, mas nessa hora uma dose mínima de realismo precisa emergir. Tanta frustração que se vê por aí, que em muitos casos resulta em intenso sofrimento psíquico e até mesmo em transtornos mentais, é fruto de objetivos irrealizáveis vendidos como possíveis. Ou o fato de alguém ter mostrado que é possível não significa que qualquer um consiga. As pessoas são diferentes, têm outras histórias, relações, contextos socioeconômicos, condições físicas e mentais…
Quer ter noção de limites? Olhe para o próprio corpo. Se você alcançou uma certa idade já deve ter notado que não possui mais o mesmo vigor e capacidade da juventude. Você até pode fazer um esforço para preservar o corpo em bom estado por mais tempo, mas ele não cessa de envelhecer, sem contar que sempre estará suscetível a doenças em qualquer fase da vida.
Olhe para as relações. Você pode fazer tudo para construir a melhor conexão possível com as pessoas, seja na vida amorosa ou parental, na família ou com amigos, na vida social ou profissional. Mas garantia não existe. Relação plena é ilusão.
Olhe para a natureza. Quando ela quer, se impõe com facilidade. Estamos vendo a todo momento fenômenos climáticos e sísmicos provocando destruição e morte.
A ideia de plenitude é uma falácia contemporânea. Você pode acordar às cinco da manhã, praticar atividade física, garantir uma alimentação balanceada ao longo do dia, ler, estudar e se informar, cumprir com êxito todas as tarefas domésticas e profissionais, dedicar tempo às pessoas que ama e ao lazer… E ainda vai ficar com a sensação de que não fez tudo o que deveria. É justamente prometendo o fim dessa sensação que alguém vai lhe oferecer uma nova técnica, ferramenta, produto, serviço ou conhecimento. O mercado depende da sua falta, da sua insatisfação.
O problema não está exatamente no mercado. Gostando ou não, ainda não criamos um sistema econômico eficaz e justo para a troca de bens, produtos e serviços. O problema está em acreditar no discurso que vende a suposta completude, que garante que você é capaz de alcançar o infinito.
Quase um século e meio atrás, Freud sacou a inevitável incompletude humana e deu a ela um nome contundente: castração.
Os sintomas que caracterizam nosso sofrimento psíquico, segundo a teoria psicanalítica, têm relação com a dificuldade de lidarmos com a castração, ou seja, com a dificuldade de aceitar que a vida nos impõe limites. Um processo de análise vai na direção de fazer o sujeito encarar a castração sem paralisar diante dela. É preciso reconhecer que a falta sempre vai existir, pois é justamente a falta que nos mantêm em movimento e, portanto, vivos.
Dito isso, meu caro leitor, só posso desejar a você muitas realizações, sabendo de antemão que não vai realizar tudo, muito menos alcançar o céu. Se conseguir levar uma vida que realmente lhe interesse, apesar das limitações, já terá sido um grande feito.
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Fábio Cadorin (@fabiocadorin) é psicólogo, jornalista, professor e doutor em Ciências da Linguagem. Nesta coluna fala sobre saúde mental e impactos da cultura sobre o psiquismo.