Da raiva a uma comunicação mais pacífica
Nesta segunda reflexão sobre Comunicação Não Violenta, apresento os quatro componentes essenciais da CNV
Pode não parecer, mas a raiva é uma emoção importante e necessária, estabelecida ao longo de milhares de anos na evolução humana. Diante de uma ameaça, ela desencadeia uma série de reações fisiológicas que põe nosso corpo em prontidão para lutar ou fugir. Pura estratégia de sobrevivência.
Só que nosso processo evolutivo também é marcado pelo aparecimento da linguagem simbólica. Em algum momento, passamos a usar palavras e elas foram decisivas para que pudéssemos ter pensamentos complexos. Superamos, então, as determinações do instinto, criamos cultura e nos destacamos do reino animal. Ou seja, embora a raiva seja um componente bem orgânico, passou a ter contornos psíquicos.
Com o tempo, as ameaças mudaram. Em vez do encontro inesperado com o animal feroz, hoje nossa raiva é despertada por incontáveis situações comuns à convivência social. Diferenças pessoais, conflitos de ideias, comportamentos que julgamos inadequados, por exemplo, são mais que suficientes para tirar do sério muitos de nós.
Desde cedo, aprendemos que o impulso da agressão física na hora da raiva deve ser controlado. A vontade de lançar palavras cortantes também. Nos dois casos, pode haver consequências e punições, até mesmo legais, só que como os efeitos da violência verbal costumam ser menos visíveis, é aí que mais fraquejamos. Nossa comunicação vira instrumento de violência.
Foi observando, ao longo de muitos anos, os choques gerados pela comunicação inadequada que o psicólogo americano Marshall Rosemberg desenvolveu na década de 1960 uma abordagem que usa recursos da linguagem para mediar conflitos. A chamada Comunicação Não Violenta (CNV) passou a ser aplicada mundo afora. Desde pequenos conflitos pessoais até grandes confrontos entre nações, muita crise foi amenizada por meio da metodologia da CNV.
Essa abordagem propõe uma comunicação mais empática pelo exercício da autoconsciência, da expressão autêntica e da compaixão. Para entrar em relação com o outro em uma posição não violenta, é preciso partir da premissa de que a comunicação deve favorecer todos os lados envolvidos. É o tal jogo do ganha-ganha.
A metodologia baseia-se em quatro componentes principais: observação, sentimento, necessidade e pedido.
Observação é a habilidade de descrever a situação sem avaliações ou interpretações pessoais. Embora a percepção da realidade esteja impregnada da história pessoal, dentro do possível, é necessário focar nos fatos, sem misturar opiniões ou juízos de valor.
Sentimento, nesse contexto, tem a ver com o que a pessoa sente em relação à situação observada. Parece simples, mas somos tão pouco acostumados a lidar e a falar de emoções e sentimentos, que às vezes não conseguimos nomear claramente o que se sentimos. De qualquer modo, no processo da CNV é importante que a pessoa busque identificar e expressar seus sentimentos de forma clara e honesta, sem julgar ou culpar outras pessoas.
A necessidade corresponde ao que está por trás do sentimento expressado. Quando algo nos tira do eixo e provoca emoções e sentimentos desagradáveis, provavelmente é porque alguma necessidade nossa não foi atendida. Reconhecê-la e expressá-la de forma clara e respeitosa, sem impor ou exigir dos outros, é o terceiro passo fundamental.
Por fim, o pedido diz respeito à solicitação de uma ação concreta que possa satisfazer a necessidade identificada. O pedido deve ser específico, factível e respeitoso, levando em consideração as necessidades e limitações de todas as partes envolvidas.
É evidente que conhecer o passo a passo da abordagem não significa habilidade para aplicá-la. Isso requer exercício, prática e, sobretudo, vontade de promover relações mais pacíficas. Que essa breve explanação seja ao menos uma semente que possa estimular você a buscar mais conhecimentos sobre o tema. Criar uma cultura de paz depende de cada um de nós.
Para saber mais, leitura essencial é a obra pioneira do próprio Marshall. Assim como fiz na coluna anterior, segue a referência:
*ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 5.ed. São Paulo: Ágora, 2021.
***
Fábio Cadorin (@fabiocadorin) é psicólogo, jornalista, professor e doutor em Ciências da Linguagem. Nesta coluna quinzenal fala sobre saúde mental e impactos da cultura sobre o psiquismo.