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CÉLIO BOLAN: A rua não é sopa

A vida é de quem quer mais do que um prato de comida.

Ele guarda sua cozinha improvisada dentro de uma caixa que carrega nos braços. Panelas, talheres e uma lata de cerveja vazia, usada como fogareiro a álcool. Recolhe desodorantes aerossóis e isqueiros do lixo. Com eles maçarica os alimentos, ora um peixe pego na orla de qualquer praia, lagoa ou rio, ora voos rasantes alcança pombos que distraidamente curtiam as belezas de qualquer cidade onde mora de períodos variáveis. É melhor pedir do que roubar em situações onde a caça não teve sucesso. Do cardápio de problemas, comida não é a única necessidade. Ele tem a pele ressecada e se não consegue um chuveiro, a higiene é feita ali mesmo, na agua salgada. Ali mesmo se asseia sabendo que os caras gastam agua pra caramba para lavar os carros.

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Violência é outro ingrediente das ruas. Foi roubado, nunca roubou, levaram seu único documento, Na hora do descanso, sonhar só se for de olho aberto. Nem sobre tortura indica sua moradia. De acordo com o Diagnostico POP participativo apenas 7% das pessoas em situação de rua está abrigada ou acolhida em alguma instituição. Ele é linha de frente e membro ativo do Movimento Nacional da População em situação de Rua de Santa Catarina (MNPR-SC), referindo-se as agressões noturnas de que são alvos. Mexeu com um, mexeu com todos. As reuniões do movimento são as segundas feiras em local incerto ou certo de que não serão perturbados. Durante o ensino fundamental e médio, estudou nos colégios, Catarinense, Geração e Energia. Diz que caiu numa família errada e aos pouquinhos foi vindo para rua. Há 14 anos vive nelas.

Segundo dados do Diagnostico POP participativo, quase 70% de quem está na rua está nessa situação mora há menos de cinco anos na rua. Ele não foi para as ruas por causa das drogas, mas não tardou para que elas viessem. Foi uma forma de poder passar essa dor, ressente-se. Os dados também indicam que 88% dessa parcela da população consomem ou alguma vez já consumiu drogas. Nas bordas do tecido social não há alternativas para esquecer o sofrimento. Reivindica um projeto de esporte para a comunidade. Cerca de 60% não tem acesso à atividade física ou não praticam esportes. Desassistidos pelo poder publico, improvisam a solução através da auto-organização. Aos domingos se reúne em um parque qualquer para jogar futebol com uma bola maltratada pelo excesso de uso. Aprendeu a não pensar no individual, antes só pensava no seu prato de comida, no seu território, no seu uso da droga. Não tinha essa de companheiro de rua, sempre foi uma cara só. Em 2012, acendeu o pavio, mas para a luta social e entrou para a militância. O movimento lhe fez muito bem, se tornou mais humano, aprendeu outros valores. A recompensa vem do sorriso e do abraço dos parceiros. Estamos fazendo um trabalho coletivo. E diz que Hércules é muito pequeno perto deles. Se a gente tiver num bloco junto, a dor vai ser menor. Marrento, insistem no movimento mesmo ameaçado de violência pela policia para acabar com o mesmo. É a voo mortal no escuro.

A gente não quer só a p…. de um prato de comida. Mais de 95% da população em situação de rua faz pelo menos uma refeição diária. 55% comem três vezes ao dia. Entre instituições religiosas, ONG e outras organizações, 32 grupos servem alimento no centro desta cidade em questão. Acham que a gente é morto de fome. Somos famintos por conhecimento, quero acesso a uma biblioteca, quero que alguém me escute. Eu quero que alguém fale assim: você sabe pintar?. Cara tem um amigo meu que tá querendo pintar a garagem. Cerca de 45,5% de quem está na nessa situação não tem acesso a qualquer tipo de cultura e menos de 30% sobrevive do ato de pedir.. 92,4% de quem vivem na rua sabe ler e escrever. Conhecem Franz Kafka, Albert Camus, como dizem o conhecimento não está só em Nova York, Unesc ou na biblioteca da USP. Orgulha-se de quem é, mas admite que falta muito para chegar onde deseja. Ele ainda esta se me modificando. Seu sonho é publicar um livro. Ele põe em pratica essa de raciocínio na militância do MNPR-SC. Socialista convicto, ele sintetiza teorias politicas sofisticadas de forma simples e didática. Às vezes ele não poupa acidez, que legal que vocês tão trazendo marmitas…mas não é só isso que a gente precisa. A exclusão está servida! Para ele a comida não é a maior dificuldade, mas sim a parte da higiene pessoal, tomar banho e usar banheiro.

Com o inicio da greve dos servidores públicos municipais exigindo a retirada do projeto que prevê que as organizações sociais tenham que atender o controle de serviços. População de rua faz politica, discute politica e faz parte dessa sociedade também, durante a assembleia em nome do MNPR-SC, ele admite que se sentem isolados no movimento organizado de lutas. E afirma com todas as letras: “Estou cansado de morrer. Eu quero viver”. As afirmações são as mais diversas possíveis, tipo racismo, nunca entendeu porque o saco de compras é branco e o saco de lixo é preto. Eles se veem como um povo que lhe negam chances há séculos. Dormindo em seu apart hotel se revoltam ao acordar e viram que suas cabeças estavam na altura dos pés das pessoas. E emenda umas das frases preferidas, o mesmo HIV que mata um pobre aqui também matou Cazuza. Os detalhes desta história parecem ser filme de horror e bravura, mas é da pele. Morador de rua, morador de casa, muitas coincidências, organização de classes, dores, saudades, drogas, abraços, elogios, sorrisos e o que mais queremos: Não sermos invisíveis e que todo dia não seja a mesma noite.

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