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Como o carnaval originou o lança-perfume

A droga já foi símbolo de festa e livremente comercializada no país

O carnaval se tornou uma das festas características brasileiras quando aterrissou em terras tupiniquins, sendo adaptado com muito brilho, música local e apreço popular, um dos mais notórios festejo acessível em todo o Brasil. Comemorado em avenidas com grandes desfiles ou com passeatas em bloquinhos regionais, o carnaval ganhou características próprias nacionalmente, o samba logo venceu as demais musicas concorrentes, a cerveja passou a ser a companheira predileta dos foliões e, em especial, viu um entorpecente virar o símbolo carnavalesco. Esse entorpecente, de origem argentina, recebeu o nome de lança-perfume. 

Um dos símbolos dos carnavais do passado, o lança-perfume não se tornou inspiração para uma das mais célebres canções de Rita Lee por acaso: entre a diversão e a contravenção, a alegria e o perigo, o “lança” surgiu como um instrumento de folia e diversão para o carnaval carioca. Tecnicamente o produto possuía a função que o nome literalmente sugere: para que os foliões e folionas lançassem uns nos outros, como mera brincadeira, um líquido perfumado contido dentro de uma garrafa pressurizada. Antes de sua função alucinógena ser descoberta e se tornar popular nas festas como uma espécie de droga-símbolo da festa momesca, o lança-perfume era um brinquedo inocente, que começou a se popularizar no Rio – e do Rio para todo o Brasil – no início do século passado.

O produto foi criado pela empresa francesa Rhodia no final do século XIX, e consistia em um solvente a base de cloreto de etila, éter, clorofórmio e diversas essências perfumadas que davam o odor peculiar a cada vidro. Os lanças eram vendidos em tubos de alta pressão, o que permitia que o perfume fosse borrifado – e também que fosse facilmente evaporado e inalado. Inicialmente as garrafas vinham para o Brasil importadas de sua matriz francesa, até que no início do século XX passaram a ser fabricadas na filial argentina da Rhodia. A droga com base em solvente inalante acabou tornando-se destaque nas comemorações, mas longe do status de droga barata. Chegou ao Brasil em 1906 e era uma droga cara, usada apenas pela elite carioca, o composto da receita Argentina alcançou popularidade nacional.

Não se sabe ao certo em que momento que era um mero e inocente passatempo começou a ser utilizado como um alterador de consciência, mas não é difícil supor tal processo – que provavelmente se deu um tanto por acaso. Em pouco tempo o suposto brinquedo se faria presente, junto das serpentinas, dos confetes e das fantasias, como artefato fundamental dos festejos e bailes de carnaval por todo o Brasil. Era uma droga perfumada com odores agradáveis ao olfato humano para ganhar novos adeptos. Vem daí o nome brasileiro de “lança-perfume”. 

Com os salões lotados e os corações já acelerados de carnaval, o ar tomado pelo vapor dos lanças-perfumes aos poucos ia se transformando em euforia, adrenalina e alterações auditivas e visuais – conforme a substância era absorvida em nuvem pela mucosa pulmonar, e levada pela corrente sanguínea para todo o corpo. Para descobrir a origem daquela “onda”, somar um mais um e passar a inalar diretamente o jato fino que saia dos vidros há de ter sido questão de instantes – e pronto: os efeitos eram intensos e passageiros, e por isso era comum que se inalasse diversas vezes o lança ao longo da noite. Com isso, se enchiam cada vez mais os cofres da Rhodia a cada fevereiro.

Em meados dos anos 1920 o lança-perfume havia se tornado um símbolo do carnaval – e a maioria o utilizava como um desinibidor, um combustível social, uma droga propriamente. Com o mercado em franco crescimento, novas marcas começaram a aparecer – Geyser, Meu Coração, Pierrot, Colombina, Nice e mais. Para conter os constantes acidentes com os recipientes em vidro, em 1927 foi lançado o Rodouro, versão em embalagem exclusiva em frascos de alumínio dourado, uma cor típica do carnaval – nesse ano, segundo registros, o consumo de lança-perfume alcançou 40 toneladas.

Frasco metálico de lança-perfume, como era comercializado na primeira metade do século 20 / Crédito: Wikimedia Commons

Não demorou até que a Rhodia começasse a fabricar o produto no Brasil, sob o nome Rodo, e em Recife uma das maiores fabricas nacionais, a Indústria e Comércio Miranda Souza S.A., lançassem os sucessos Royal e Paris, que tomariam os bailes e festas de carnaval por todo o nordeste.

E como não poderia deixar de ser, eram as marchinhas de carnaval que divulgavam principalmente os lanças da Rodo. No final dos anos 1920, porém, a oposição começa se estabelecer contra os efeitos do lança-perfume, e na própria imprensa as denúncias já podiam ser lidas. Os relatos de vícios, acidentes graves ou mesmo mortes – algumas por enfarto, outras por desmaios seguidas de quedas de alturas ou mesmo janelas – não reduziam o sucesso dos lanças nos carnavais.

“Esclarecimento” publicado pela Rhodia em jornal de 1938

Efeito entorpecente foi proibido por Jânio Quadros

Em 18 de agosto de 1961, Jânio Quadros, na época presidente do país, instaurou um decreto para proibir, em instância máxima federal, a fabricação, distribuição e consumo do lança-perfume. Curiosamente a proibição se deu por sugestão do lendário apresentador Flávio Cavalcanti –  conservador e famoso por quebrar os discos de artista que não lhe agradassem em seu programa. Cavalcanti iniciou uma verdadeira campanha moralizadora contra o lança, e Jânio, não menos moralista e polêmico, – e que em seus pouco mais de 7 meses de governo legislou sobre o tamanho das roupas de banho, os trajes das misses e até sessões de hipnotismo – aceitou a sugestão, e decretou que estava proibida “a fabricação, o comércio e o uso do lança-perfume no território nacional”, através do Decreto n º 51.211, de 18 de agosto de 1961.

O apresentador Flávio Cavalcanti

Desde então, reconhecidos os efeitos da droga, sua comercialização, mesmo que sendo facilitada pela venda livre dos itens que o compõem, é proibida. Todavia, como sempre ocorre com tudo que é proibido, o lança-perfume vem sendo largamente usado em todas as festas nacionais, não apenas no carnaval, mas em outros pontos de festejo durante todo o ano, travestido com novo nome, passou a ser denominado “loló”. 

Como se sabe sobre qualquer droga, a proibição não é eficaz em inibir de fato seu uso, e o mesmo aconteceu com o lança – que saiu da linha de frente como símbolo do carnaval para se tornar um produto-fetiche, feito qualquer outra droga, utilizado escondido até hoje, ainda que evidentemente em menor quantidade.

Garrafa de lança-perfume da marca Rhodia, do início do século passado

Em 1967 a música “Cordão da Saideira”, de Edu Lobo, iria documentar o efeito não só da proibição do lança-perfume sobre o carnaval como metaforicamente da ditadura militar sobre a alegria do país. Em 1980, no entanto, o início do fim do regime também seria comemorado com um “Lança-perfume” – dessa vez de Rita Lee e Roberto de Carvalho, que se tornaria imenso sucesso no Brasil, por dois meses alcançaria o primeiro lugar na França e ainda chegaria ao Top 10 da Billboard, nos EUA, levando ao mundo o “cheiro de coisa maluca” e os brilhantes (e explícitos) versos dessa grande canção.

Apesar da lembrança romântica e do símbolo de uma época no carnaval, vale lembrar que o lança-perfume é hoje considerado uma droga, e que sua inalação acelera os batimentos cardíacos agudamente, e pode destruir células cerebrais e levar o usuário ao desmaio ou mesmo a uma parada cardíaca. Os efeitos imediatos, contudo, confundem os usuários, que podem até cogitar estarem acometidos por efeitos alucinógenos, mas, provoca intoxicação cerebral, prejudicando a capacidade motora, crítica e reflexiva. 

Foram no entanto quase 60 anos de farra, e é ai que cai por terra a tese de que nossos vovôs eram pessoas conservadoras. Mas não podemos esquecer que mesmo em qualquer época, e nem mesmo no carnaval vale tudo, é preciso ter prudência, e festejar com cautela, para que seja uma festa alegre, saudável e com segurança.

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