Ciência de alto nível projeta Sul catarinense no cenário de grandes pesquisas sobre a Covid-19
Estudo coordenado por cientista do Laboratório de Psiquiatria Translacional da Unesc quer saber se a infecção por coronavírus é fator de risco para a depressão. Pesquisa que iniciou em 2020 e busca voluntários para a terceira etapa é mais uma contribuição da universidade comunitária de Criciúma (SC) para o enfrentamento das consequências da pandemia
Cerca de três anos atrás, a ciência moderna estava prestes a se deparar com um dos seus maiores desafios. Pouca gente seria capaz de imaginar que em pleno século 21 um parasita microscópico iria abalar o mundo. Bastaram poucos meses para que o SARS-CoV-2, vírus causador da Covid-19, desencadeasse uma crise sanitária global e exigisse da comunidade científica uma ação emergencial e de grande escala.
Enquanto grupos de pesquisadores de diversos países correram contra o tempo para produzir vacinas, outros cientistas começaram uma série de estudos para entender os efeitos desse patógeno até então desconhecido sobre o organismo humano.
Além dos sintomas mais evidentes no sistema respiratório, que foram responsáveis pela maioria das mortes em todo o mundo, pesquisas mostram que o ataque do coronavírus pode ter outras consequências menos imediatas sobre a saúde das pessoas infectadas. A chamada Covid longa indica que a ação do vírus pode durar meses e até anos, afetando outros sistemas e órgãos do corpo, inclusive o cérebro.
Uma das suspeitas é que a capacidade de neuroinvasão do SARS-CoV-2, já identificada pelos cientistas, pode ter relação com transtornos psiquiátricos. É aí que entram em cena pesquisadores da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), de Criciúma (SC).
Depressão em foco
Desde 2008, a bióloga e doutora em Ciências da Saúde Gislaine Zilli Réus estuda a depressão. Ela realiza pesquisas experimentais para entender aspectos neuroquímicos e comportamentais do transtorno. Coordenando a unidade de pesquisa em depressão do Laboratório de Psiquiatria Translacional da Unesc, Gislaine seguia normalmente com os estudos até se defrontar com um dos momentos mais críticos da carreira como cientista. Foi no início de 2020, quando resolveu incluir o vírus causador da Covid-19 em suas pesquisas.
“Naquele período, soube de um edital do governo federal que iria selecionar e custear pesquisas voltadas ao enfrentamento da pandemia. Como já estudava depressão, imaginei que seria pertinente investigar os impactos do novo vírus e da crise sanitária provocada por ele sobre a saúde mental”, conta Gislaine.
O projeto foi, então, submetido e aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e ao Ministério da Saúde. Depois, outros órgãos de fomento também resolveram apostar e investir na pesquisa.
Por dentro da pesquisa
Para entender se o coronavírus pode ter influência no surgimento ou agravamento de casos de depressão, os pesquisadores avaliam pessoas que foram infectadas e comparam com outras que não tiveram Covid-19. O estudo é feito em etapas. A primeira ocorreu entre setembro de 2020 e junho de 2021. A segunda, seis meses depois. Dentro de poucos dias, ainda na primeira quinzena de novembro, deve ter início a terceira etapa.
Uma equipe multiprofissional foi criada para desenvolver a pesquisa intitulada “Investigação de marcadores neuroinflamatórios e de dano neuronal e suas relações com transtornos neuropsiquiátricos em sujeitos positivos para Covid-19”. Estão envolvidos profissionais e estudantes das áreas de biologia, biomedicina, psiquiatria, psicologia e enfermagem.
Em cada etapa, eles coletam amostras de sangue e fezes e, também, aplicam questionários para identificar a condição psicológica dos voluntários, verificando a existência ou não de sintomas correlacionados à depressão.
“A partir desses dados, conseguimos aplicar escalas e avaliar se existem sintomas de depressão, ansiedade, estresse e transtornos do sono, por exemplo. Já o material biológico permite investigar a presença de marcadores que indicam inflamação ou alterações neuronais e na microbiota intestinal. Fazendo todas as correlações, é possível avaliar se o coronavírus tem alguma influência em casos de depressão”, explica Gislaine.
Unidos pela ciência
Para ampliar o alcance da pesquisa, a equipe do Laboratório de Psiquiatria Translacional da Unesc lançou mão de parcerias que foi desenvolvendo ao longo dos anos. Uma das instituições que ingressou no estudo foi a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), de Chapecó, cidade onde também começaram as coletas de amostras biológicas e aplicação de questionários com voluntários.
A bióloga e doutora em Ciências da Saúde Zuleide Maria Ignácio coordena a pesquisa no oeste catarinense. Para ela, esse tipo de trabalho conjunto é extremamente relevante ao desenvolvimento científico.
“As parcerias possibilitam que os cientistas agreguem suas competências, aumentando a qualidade e a possibilidade de resultados inéditos e inovadores. A partir das diferentes competências, equipes de pesquisa e fomentos compartilhados, as parcerias também tornam possíveis resultados relevantes com customização de tempo e dinheiro”, ressalta.
A pesquisadora argumenta, ainda, que as parcerias permitem que novos grupos e instituições possam evoluir, aumentando e melhorando os grupos de pesquisa e, consequentemente, a ciência em âmbito estadual, nacional e até internacional.
No exterior, a pesquisa conta com apoio da The University of Texas Health Science Center at Houston, nos Estados Unidos, que faz a avaliação de marcadores biológicos. Já na McMaster University, do Canadá, quem contribui com a análise de dados é a psicóloga brasileira Taiane de Azevedo Cardoso. Doutora em Saúde e Comportamento, ela foi convidada a fazer parte do estudo pela experiência que desenvolveu lá com pesquisas de coorte, aquelas que acompanham indivíduos ao longo do tempo para verificar fatores de risco ou proteção para determinadas condições de saúde.
“Ao identificarmos os fatores de risco para a depressão, podemos desenvolver estratégias de prevenção ou de detecção precoce da depressão, para que intervenções sejam entregues de forma mais rápida e efetiva para a população”, diz Taiane.
Desafios
Se estudar um vírus altamente contagioso e potencialmente letal já é uma tarefa complexa, contar com a boa vontade de voluntários para a pesquisa acaba sendo uma dificuldade extra. Além de todos os aspectos técnicos e éticos envolvidos, que exigem cuidado extremo, nem sempre as pessoas estão dispostas a participar.
De acordo com a biomédica Laura de Araujo Borba, coordenadora de logística e de processamento das amostras biológicas da pesquisa, obter esse tipo de engajamento não é fácil, principalmente em pesquisas de longa duração. Primeiro, existe o desafio de conseguir voluntários, depois, a necessidade de fazer com que retornem para as etapas seguintes.
“Quando a gente começou, ainda estava quase tudo em lockdown, então, as pessoas tinham mais tempo para participar. Agora, elas voltaram a trabalhar. A gente tenta contornar esse obstáculo fazendo entrevistas online, fora de horário comercial, mas ainda existe uma resistência grande”, lamenta.
Diferentemente de muitos participantes, a biomédica Francielle Ferrari fez questão de colaborar como voluntária desde a primeira fase. Reconhecendo o valor da ciência e a importância desse estudo, ela se envolveu tanto que, em um segundo momento, chegou a integrar a equipe de pesquisadores com a missão de fazer contato com os demais voluntários para que retornassem na etapa seguinte.
“Senti na pele a dificuldade de trazer as pessoas de volta. A maioria alega não ter tempo. Muitos sequer respondem os nossos contatos. Sinto que precisamos de uma mudança cultural em relação ao valor da ciência”, pondera.
Em Chapecó, também não foi fácil conseguir voluntários. A pesquisadora Zuleide Ignácio diz que a resistência veio até mesmo do poder público.
“Não obtivemos o consentimento ou a parceria da secretaria de Saúde para contatar as pessoas. Então, os participantes foram voluntários que procuraram a equipe de pesquisa, a partir de divulgações na televisão, jornais e nas mídias sociais. Se tivéssemos acesso ou parceria do sistema de saúde, possivelmente teríamos conseguido um número maior de participantes”, acredita Zuleide.
Em Criciúma, a pesquisa tem apoio da secretaria municipal de Saúde, que disponibilizou a lista de pacientes cadastrados com Covid-19. E agora que o estudo está entrando na terceira fase, é fundamental que mais pessoas possam se tornar voluntárias. Mesmo quem não tenha participado de etapas anteriores pode se inscrever. Basta enviar mensagem de WhatsApp para o número (48) 99678 – 5002.
“Para que a gente possa fazer as comparações com as coletas anteriores, é muito importante que os voluntários retornem. Mas pessoas novas, que acabaram não participando das outras fases, também podem vir, porque a gente consegue correlacionar, comparar quem teve Covid um ano atrás com quem não teve, por exemplo”, afirma a coordenadora de logística Laura Borba.
Primeiros resultados
Segundo a coordenadora geral da pesquisa, Gislaine Réus, ainda há um longo percurso de investigações pela frente. Mas resultados preliminares obtidos logo na primeira etapa já apontaram que os indivíduos com Covid-19 apresentaram maiores níveis de estresse e maior gravidade de sintomas depressivos se comparados com aqueles não infectados. Além disso, altos níveis de estresse foram associados com a gravidade da ansiedade, depressão e insônia nos dois grupos.
“Houve, também, uma correlação positiva entre os níveis de proteína C reativa ultrassensível, uma proteína inflamatória de fase aguda, e a gravidade dos sintomas psiquiátricos em indivíduos com ou sem Covid-19. Ou seja, foi possível observar alterações químicas no organismo, provavelmente resultantes do estresse vivido durante a pandemia, em voluntários dos dois grupos”, revela Gislaine.
Na segunda etapa, que permitiu uma comparação com a primeira, ficou demonstrada a alta incidência de depressão na amostra total. A probabilidade é que os fatores de risco relacionados ao estresse e às alterações químicas no organismo, que também haviam sido identificadas na fase anterior, justifiquem esse resultado.
“Existem indícios de que as dificuldades impostas pela necessidade de isolamento, o medo e todas as consequências negativas da pandemia, em âmbito social e econômico, tenham gerado mais casos de depressão. Mas ainda é cedo para afirmar que o vírus, diretamente, não seja causador do transtorno”, observa.
Reconhecimento
Essa pesquisa, assim como todo o trabalho em prol da ciência e da comunidade desenvolvido pelo Laboratório de Psiquiatria Translacional, ajudou o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde (PPGCS) da Unesc a conquistar recentemente um importante reconhecimento nacional, que projeta a instituição como referência em pesquisa científica até mesmo para fora do país. O programa recebeu conceito sete na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão ligado ao Ministério da Educação. Com isso, a Unesc passa a ser a única universidade não estatal do Brasil com nota máxima na área.
“A nota sete representa a Unesc no hall das melhores universidades do Brasil e reconhecida internacionalmente como importante referência científica. É a coroação do trabalho árduo e dedicado de pesquisadores brilhantes, ativos e comprometidos com o conhecimento e com a sociedade. Essa é uma das nossas fortalezas”, enaltece a reitora Luciane Ceretta.
Além do Laboratório de Psiquiatria Translacional, o conceito conferido ao PPGCS valida o trabalho de excelência dos laboratórios de Biomedicina Translacional, Fisiopatologia Experimental e Neurologia Experimental da universidade.
Com mestrado reconhecido em 2004 e doutorado reconhecido em 2006, o programa tem, hoje, 17 professores e 133 alunos, que atuam nas linhas de pesquisa em Fisiopatologia e Neurociências.