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Lucille Chalifoux: a mulher que vendeu os filhos por dois dólares

Em 1948 o jornal “The Vidette-Messenger of Valparaiso” publicava uma imagem que iria chocar o mundo. Mas qual a história por trás desta fotografia? A “mercadoria” está exposta na escada: no degrau mais alto, Lana, 6 anos, e Rae, 5; embaixo, Milton, 4, e Sue Elle, 2. A mãe, Lucille Chalifoux, de 24 anos chora escondendo o rosto do fotógrafo, estava grávida de David.  A placa na qual estava escrito “4 crianças à venda – Informe-se aqui” foi colocada pela mãe.

Tirada em 4 de agosto de 1948, em Chicago (EUA), a foto foi publicada em vários jornais, causando comoção e fazendo surgir ofertas de ajuda de leitores comovidos. Décadas depois, uma reportagem no jornal The Times, de Indiana, mostrou que a foto marcava o começo de uma impressionante história de falta de amor e maus-tratos às crianças.

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Com o aparecimento da Internet, a fotografia ganhou outro impacto. Alguns compartilharam a imagem como símbolo da luta das camadas mais pobres da sociedade, outros como um exemplo de como as fotografias podem enganar – vários acreditam que tudo não passou de uma encenação. A verdade é que a fotografia foi mesmo publicada nesse jornal – é possível encontrar edições completas de centenas de jornais norte-americanos e há quem alegue mesmo ter tido um papel ‘ativo’ nesta história: o jornal “The Times of Northwest Indiana” entrevistou quatro pessoas que afirmam ser as crianças vendidas.

Vendidos ou adotados, os irmãos se dispersaram, para só voltarem a se encontrar quando adultos.

A família estava em processo de despejo do apartamento onde moravam depois que Ray Chalifoux, o pai da família, perdeu o emprego como motorista de caminhão de carvão. Foi frente à perspectiva de ficarem sem-teto e da tarefa de alimentar tantas pessoas, que eles decidiram leiloar os próprios filhos.


RaeAnn e Milton com a família Zoetman

RaeAnn Chalifoux foi comprada por US$ 2 pelo casal de fazendeiros John e Ruth Zoeteman. Eles negociaram o menino mais novo, Milton, porque ele estava chorando muito ao ser separado de sua irmã. Uma vez na fazenda, as crianças tiveram os seus nomes alterados para Beverly e Kenneth, respectivamente, e foram submetidos a viver em situação análoga à escravidão. Espancadas diariamente para trabalharem durante horas a fio, as crianças eram chamadas de escravas pelos seus compradores e comiam sobras.

RaeAnn Chalifoux

Aos 17 anos, RaeAnn foi sequestrada e estuprada. Assim que ficaram sabendo que devido à violência sexual ela engravidou, os escravocratas que a adquiriram a enviaram para um lar no Michigan de mãe solteiras. A criança foi tomada dela após o parto e colocada para adoção. Depois disso, RaeAnn fugiu. “Fui vendida por 2 dólares. Como meu irmão Milton estava perto de mim chorando, o casal resolveu levá-lo também”, conta Rae ao jornal.  Aos 21 anos, ela reencontrou a mãe biológica. “Ela não tinha remorso, nunca nos amou”, diz.

 

Milton Chalifoux

Milton, por sua vez, sofreu anos de abusos em todos os aspectos à medida que foi crescendo junto do casal. Quando ele conseguiu escapar, o seu estado mental já havia se deteriorado e, então, ele foi parar em um tribunal após empurrar um policial durante um episódio de fúria. Visto como uma espécie de ameaça à sociedade, o juiz que pegou o caso de Milton o fez escolher entre cumprir sentença em um hospital psiquiátrico ou em um reformatório. Ele escolheu a primeira opção.

Disse não ter muitas memórias de infância, lembra-se que foi espancado pelo seu pai adotivo, que quis fazer dele um escravo. “Eu não sabia o que era um escravo. Eu era apenas uma criança”. Em 1970, encontrou a mãe biológica pela primeira vez. Passaram um mês juntos, mas as coisas não correram bem – Milton envolveu-se numa luta com o companheiro de Lucille e a polícia foi chamada ao local. Liberado do hospital psiquiátrico em 1968 após anos em puro sofrimento, Milton Chalifoux expressou o que a maioria parecia sentir: “Nossa mãe biológica nunca nos amou. Ela não se desculpou por me vender quando eu a encontrei. Ela não fez isso porque precisava, fez porque não se importava”.

De todas as crianças, David é o que parece ter tido a experiência mais parecida com a de um lar feliz.

David McDaniel

Bedford Chalifoux, a criança que não tinha nascido quando a foto foi tirada, nasceu em 26 de setembro de 1949. Foi adotado no ano seguinte pela família McDaniel, que lhe deu o nome David. De acordo com os documentos da adoção, citados pela “The Times of Northwest Indiana”, mostram que o bebé apresentava vários sinais de maus-tratos, tinha marcas de mordidas e picadas de percevejos pelo corpo quando foi vendido para um casal de fundamentalistas. Registrado como David McDaniel, a criação estritamente religiosa e rígida fez o garoto fugir de casa aos 16 anos e se alistar nas Forças Armadas. Isso ajudou-o a ressignificar o sentimento de revolta e rebeldia que desenvolvera ao longo do tempo. Segundo David, após servir no Vietnã, ele encontrou a mãe anos mais tarde e ela havia tido mais 4 meninas, que manteve.

David foi criado perto de Rae e Milton e lembra-se bem de os ver “atados no celeiro”. “Eles eram muito mal tratados”, recorda o irmão mais novo que, por várias vezes, tentou soltá-los e fugir antes que fosse apanhado. Hoje, com 66 anos, não guarda rancor em relação à progenitora: quando reencontrou a mãe biológica, “ela não pediu desculpa pelo que aconteceu. Na altura, era a forma de sobreviver. Quem somos nós para julgar? Somos todos humanos. Todos cometemos erros. Ela deveria estar pensando no melhor para os seus filhos, não queria que eles morressem”.

À esquerda, Sue Ellen Chalifoux

Em meados de 2013, após 70 anos, as redes sociais permitiram a Sue Ellen Chalifoux – que sofria de uma doença pulmonar fatal – reencontrar a irmã RaeAnn. “Eu encontrei com a minha mãe biológica aos 21 anos. Ela não tinha remorso. Nunca nos amou”, relatou RaeAnn em entrevista ao jornal The Times.

A história de Sue Ellen seguiu um caminho menos conturbado: o seu filho, Timothy, afirma que a família tinha os papéis que davam conta da adoção de Sue Ellen por uma família de apelido Johnson, mas os documentos foram destruídos num incêndio. Foi criada perto do sítio onde nasceu e tinha uma vida pacata. Sem conseguir falar, Sue Ellen respondeu por escrito às questões do jornal norte-americano, mostrando-se “muito feliz por finalmente reencontrar” a sua irmã. Quanto à mãe biológica, pouco teve a dizer: “Deve estar a ardendo no inferno”.

Sue Chalifoux

Quando foram vendidas a outras famílias, Rae tinha sete anos e Sue Ellen quatro. De acordo com o jornal norte-americano, voltaram a encontrar-se em 2013, quando tinham 70 e 67 anos, respetivamente. Sue Ellen morreu pouco tempo depois deste encontro, vítima de cancro no pulmão.

Rae afirma que foi vendida a 27 de agosto de 1950 por apenas dois dólares, para sustentar o vício da mãe: o bingo. Não existem quaisquer documentos que provem a venda da criança, nem papéis relacionados com um processo de adoção. No entanto, os chamados ‘livros do ano’ da escola onde andou corroboram a história contada ao “The Times of Northwest Indiana”: quando foi levada pela nova família, ganhou um novo nome – Beverly Zoeteman. Milton, na altura com cinco anos, também foi vendido à mesma família. Passou a chamar-se Kenneth Zoeteman.

RaeAnn Chalifoux

Com as redes sociais, Rae decidiu tentar reencontrar os irmãos. Com essa busca, encontrou também a tão famosa fotografia. Diz que não se lembra do momento em que a foto foi tirada, nem tem lembranças do seu pai biológico. Só se lembra dos abusos que sofreu em casa dos Zoetemans: “Eles costumavam acorrentar-nos. Não éramos crianças, éramos trabalhadores do campo”, explicou ao “The Times of Northwest Indiana”.

“Todos nós cometemos erros. Somos seres humanos. Ela poderia estar pensando em nosso bem-estar mesmo”, argumentou David McDaniel, ironicamente o único que teve uma experiência menos pior que a dos irmãos. Em contrapartida, Sue Ellen Chalifoux foi bem incisiva em sua opinião: “Eu espero que ela esteja queimando no inferno”.

Pouco se sabe sobre Lana, a irmã mais velha. “Nunca cheguei a encontrar a minha irmã Lana. Pelo que sei, morreu em 1998, vítima de câncer sem nunca mais ter visto os irmãos”, explicou Rae. A emblemática foto publicada no jornal causou comoção em milhares de pessoas, mais tarde ela seria usada como exemplificação de um sistema ilegal e emergente de tráfico de crianças.

As pessoas que se sensibilizaram com a cena passaram a fazer doações para a família, aparentemente desconsiderando o ato brutal e inescrupuloso do casal Chalifoux. Alguns, inclusive, até alegaram que eles estavam “pensando no melhor para as crianças”. Segundo investigações, ninguém sabe para onde foi o dinheiro que o casal recebeu. De qualquer forma, a quantia desconhecida não impediu que eles vendessem todos os filhos em um período de 2 anos.

Essa é uma das histórias que mais me comove quando conto, é um misto de sentimento, difícil imaginar o que se passava realmente na cabeça daqueles pais, mas o mais triste e trágico foi o desfecho de cada uma daquelas crianças, impossível não se emocionar.

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