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No tempo da Quaresma, monges faziam um jejum à base de cerveja

A verdade é que a bebida que hoje é quase sinônimo de pecado desempenhou um papel muito importante nos mosteiros da Idade Média. Era tão indispensável que tinha santa que transformava água em cerveja!  

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A cerveja sempre constou no Ritual das Bênçãos até ser retirada após o Concílio Vaticano II, quando foi “incorporada” pela bênção genérica para alimentos. Na Babilônia, assim como no Antigo Egito, era considerada uma bebida sagrada, alimento, medicinal, e uma nobre oferenda aos Deuses. Mas antes de encomendar aquele barrilzão de cerveja, vamos entender melhor tudo isso.

Na Idade Média, como mencionei antes, a cerveja era vista como um alimento saudável, nutritivo e básico para todos, e não como um produto associado a diversão e busca de prazeres, como é hoje em dia. Os monges medievais foram os pioneiros na pesquisa e desenvolvimento de técnicas de fabricação da cerveja. Eles não inventaram essa bebida, mas melhoraram muito o seu aspecto, aroma e sabor. 

Durante a Quaresma, os monges não podiam consumir alimentos sólidos. Eles precisavam de algo que tivesse mais sustância do que a água, adaptaram-se ao elemento da região que se encaixava nas suas necessidades: a cerveja. Sendo considerado um alimento sagrado, no período de jejum a bebida (também chamada de pão líquido) era permitida. 

No século XVII, um grupo de monges da Ordem dos Mínimos (Paulaner monks, em alemão), fundada por São Francisco de Paula, mudou-se do sul da Itália para o mosteiro de Neudeck ob der Au, na Baviera (Alemanha).  

Os monges decidiram fazer a sua própria cerveja, a qual continha uma grande quantidade de carboidratos e nutrientes que os ajudavam a suportar o jejum. Seu sabor era doce e o nível de álcool era baixo. Devido à sua consistência forte, chamavam-na de “pão líquido”. Este tipo de cerveja está catalogada no tipo doppelbock e a sua cor é escura. 

Algum tempo depois, começaram a oferecer a sua cerveja ao público, inclusive, entregavam-na como um tipo de esmola aos mais necessitados. Depois, venderam-na à comunidade e se tornou um produto da cervejaria Paulaner. A Cervejaria Paulaner é uma das seis cervejarias de Munique na Alemanha, que fornece a bebida para a tradicional Oktoberfest da cidade. Em 1799 os edifícios do mosteiro foram transformada em prisão e sua cervejaria adquirida pelo mestre cervejeiro Franz Xaver Zacherl, quem, a partir de 1813, continuaria a tradição dos antigos monges elaborando uma Starkbier, e a cerveja dos monges foi batizada com o nome de Salvator, este nome vem de Sankt Vater. A tradução dessas palavras é a cerveja do Santo Padre. O logotipo atual da Paulaner mostra a figura do santo. 

Vitral de Santa Brígida na Capela de Nossa Senhora e Santa Nona (País de Gales)

A prova de que a cerveja, para o homem medieval, não fazia a menor referência ao hedonismo e aos prazeres ilícitos é que eram comuns histórias de milagres de santos relacionados à essa bebida. A mais famosa delas é a de Santa Brígida da Irlanda, que teria transformado água em cerveja em diversas ocasiões; certa vez, ela teria distribuído cerveja aos pobres, em um volume tão grande que daria para encher 17 barris (todo esse volume brotara miraculosamente de um único barril). 

Relatos como esse de Santa Brígida soam estranhíssimos para a sociedade atual. Causa-nos escândalo a ideia de um religioso com fama de santidade degustando um caneco de Stella Artois, ou se penitenciando com uma rodada de Heineken. Isso se deve ao fato de que a mentalidade geral foi influenciada por uma ampla vertente do protestantismo (em especial os batistas e pentecostais) que estigmatizou a bebida alcoólica como uma coisa essencialmente má. Os protestantes europeus, porém, não costumam demonizar o consumo moderado de álcool. 

 

Para se ver a importância que a igreja tinha para a indústria da cerveja nessa época, basta referir que existiam três santos padroeiros, protetores da cerveja e dos cervejeiros: Santo Agostinho de Hippo, São Nicolau e São Lucas, o Evangelista. 

Saint Mungo, o padroeiro da mais velha cidade da Escócia, Glasgow. E foi nessa cidade que, por volta de 540 d.C., Saint Mungo estabeleceu uma ordem religiosa, cuja principal atividade seria a produção de cerveja, sendo que esta arte é ainda hoje considerada como a mais antiga indústria da cidade. 

A cerveja foi, durante muitos séculos, uma grande aliada da austeridade monástica. Afinal, durante a Quaresma e em outros períodos de penitência, os religiosos medievais seguiam uma dura rotina de jejum, e a cerveja os mantinha razoavelmente nutridos e os ajudava a suportar o frio. Para quem está se perguntando se eles não poderiam tomar suco em lugar de cerveja, a resposta é simplesmente não. Lembremos que a Europa não é muito pródiga em frutas (muito menos no inverno). 

Para o povo em geral, a cerveja também era uma bênção, especialmente para os viajantes. Nem todas as hospedagens e tabernas medievais ficavam próximas a fontes de água corrente e fresca, e assim a água era retirada de poços, que não raramente estavam contaminados. Por isso, beber cerveja era muito mais seguro e saudável do que beber água. 

Como bons anfitriões e homens caridosos, os monges ofereciam cerveja aos viajantes e mendigos que lhes pediam ajuda. A bebida também servia como fonte de renda para os monastérios, que vendiam a produção excedente, assim como queijos e outros produtos. Até hoje, a cerveja feita pelos monges trapistas belgas é considerada por muitos especialistas como a melhor do mundo.

Padre abençoa barril de cerveja em Bruxelas

 

A cerveja sendo tão importante para os medievais, é natural que eles a considerassem digna de receber uma benção, como qualquer outro alimento. Assim, o Ritual Romano antigo da Igreja Católica possui uma benção própria para a cerveja (o novo Ritual não possui mais essa bênção). Antes de aspergir o barril ou tonel com água benta, o sacerdote profere a seguinte oração: 

 

P-A nossa proteção está no nome do Senhor.

T-Que fez o céu e a terra.

P-O Senhor esteja conosco.

T-E contigo também.

Abençoai, Senhor, esta criatura, a cerveja, que da riqueza do grão vos dignastes produzir do melhor lúpulo, para que seja remédio saudável ao gênero humano. Concedei que, pela invocação do vosso santo Nome, todos o que dela beberem recebam a saúde do corpo e a firmeza da alma. Por Cristo, nosso Senhor. 

T-Amém. 

Atualmente, durante os 40 dias da Quaresma, os católicos não são obrigados a deixar de consumir alimentos sólidos, mas devem fazer alguma penitência. O jejum é para remover a refeição principal do dia (almoço) e substituí-la por pão e água. Se não for possível, por motivos de saúde ou faixa etária, é conveniente que as refeições sejam sóbrias. Esta prática é obrigatória para todas as pessoas maiores de idade até os 59 anos. 

A Igreja pede para jejuar durante o período do Advento e da Quaresma. Durante a Quaresma, pede-se fazer jejum todas as sextas-feiras. Também pede que os fiéis devem praticá-lo na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa. 

 

A cervejaria mais antiga do mundo, no mosteiro de São Sixto, na Bélgica.

 

Em alguns lugares da Europa, onde a tradição cervejeira é muito forte e faz parte da cultura em todos os sentidos, a Bênção da Cerveja ainda é realizada, inclusive acompanhada de festividades. 

Hoje, não importa a crença, etnia ou classe social, a cerveja continua a ser uma bebida ligada à alegria, saúde – se de boa qualidade principalmente e consumida com moderação, e sagrada. Sagrada na essência da palavra, pois por mais que se aprimore a técnica, muito há de arte e de magia em sua elaboração. Saúde! Obrigada pela leitura, me siga nas minhas redes sociais: 

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