Todas as estatísticas comparativas feitas entre brancos e negros em todos os aspectos da vida social, econômica, laboral, educacional e nos sistemas de justiça e penal demonstram a existência no Brasil de um racismo estrutural silencioso no qual sobressai um hediondo lado cordial do negacionista racista e um componente pessoal, a pessoa negra, para o supremacista branco, onde matar a carne negra e muito mais comum e prazeroso.
João Alberto Silveira Freitas era um cidadão brasileiro, que como Floyd morreu covardemente assassinado sob golpes, murros, pancadas e asfixia por seguranças brancos que prestavam serviços de vigilância num supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre.
Mais um a somar na perversa estatística onde constam milhares de Marielles, Amarildos, Januários, Migueis, Marias, Josés, Joãos, Pedros …, e como dito por Breiller Pires, ações como a que levaram à morte de Beto, como era conhecido entre seus amigos, está “hoje fundada na colonização, capitalizada na escravidão e repaginada na era das redes sociais na qual, a discriminação racial se consolida cada vez mais como o título de renda mais sólido para governos, empresas e pessoas físicas que lucram com a eliminação de corpos negros. Nem mesmo o brutal assassinato de João Alberto Freitas Floyd, espancado por seguranças na porta do Carrefour, em Porto Alegre, ameaça a estabilidade dos rendimentos. Afinal, toda a cartela de aplicações está estruturada sobre a lógica da diversificação das formas de opressão e massacre. A covardia do assassinato de Beto, choca pela brutalidade e frieza dos executores, mas não pelo CNPJ. Nos últimos anos, o Carrefour se especializou em protagonizar episódios de extrema violência. Não faz nem quatro meses que um funcionário morreu após sofrer ataque cardíaco em uma loja de Recife e teve o corpo coberto com guarda-sóis para que o estabelecimento continuasse funcionando”.
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Mas, tão cruel quanto a morte de Beto é o próprio racismo e para combatê-lo não basta apenas indignação, é preciso de uma boa dose de rebeldia, já que ultrapassa o limite da razoabilidade imaginar que seguranças de supermercados se sintam legitimados a matar, o que nos leva a crer, que cabe razão ao rapper Emicida, para quem “se esse fosse um país sério, se tivesse respeito pelos seus cidadãos, as ruas estariam pegando fogo”.
Enquanto isso, o que vimos de algumas autoridades públicas são justificativas negacionistas, logo legitimadoras de violências e truculências de um Estado feito para matar o povo negro. As ruas não estão pegando fogo como queria Emicida, mas creio que seja ele, o fogo, o elemento que mais se relaciona com a história do povo negro queimado durante séculos sob as chibatadas que ardiam como brasas sobre seu corpo, mas também que iluminava e fazia arder os corações por luta, liberdade, vida e dignidade, desde em que “entoou um canto de revolta pelos ares, no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou”.
Negar a existência do racismo no Brasil é tão cruel quanto o próprio racismo. É como fechar os olhos para uma realidade e invocar para si o mito da caverna, porque negá-lo é também uma forma velada de ser racista. Poderia, aqui, enumerar uma série de fatos e dados que comprovariam a sua existência. Vou ater-me na adaptação feita por Caetano Veloso de um poema do abolicionista Joaquim Nabuco, intitulado “Noites do Norte”, que assim diz:
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.
Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte…
É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte”.
É o racismo contado por um dos mais ilustres nomes da elite da época, que embora filho de uma família escravocrata não se dignou a segui-la, por acreditar que “o verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade”.
Negar a existência do racismo ou considerar que tal aberração é assunto para negros, militantes e alguns intelectuais, mais do que contribuir para que ele não cesse é, também, se refestelar na hipocrisia reinante numa sociedade, em que passados mais de 130 anos da abolição inconclusa, teima em não reconhecê-la e assim continuar na cômoda, covarde e perversa posição de fechar os olhos para os índices expressivos de violência contra a população negra e fazer justificar o porquê da carne mais barata do mercado ser a carne negra.
Não acabaremos com o racismo, enquanto todos, sem distinção, não sentirmos que essa é também nossa responsabilidade traduzida num comprometimento humanitário, respeitoso e de empatia na luta por um modelo de sociedade onde a cor da pele não seja fator de discriminação.
Vidas negras importam!