Bom negócio é cuidar de gente
Empresa que não aposta no capital humano sai no prejuízo. Investimento em saúde física e mental de colaboradores é estratégico para o crescimento de qualquer organização, principalmente, em tempos de pós-pandemia
Mal tinha acabado o verão deste ano, ainda era bem calor, mas a etiquetadora Heloísa Souza da Rosa, de 21 anos, começou a usar blusa durante o trabalho na empresa Vanelise Confecções, em Nova Veneza (SC). O comportamento não habitual chamou a atenção de líderes do setor, que foram perguntar a ela se estava tudo bem. Heloísa, que vinha de uma experiência profissional anterior bem diferente, ficou surpresa.
“Eu nunca achei que eles fossem perceber isso e eles perceberam. É gratificante, de certa forma, saber que alguém se importa com você. Saber que tem alguém que todo dia vai perguntar ‘e aí, como é que você está? Você está bem?”.
Hoje Heloísa está bem, mas naquele período não estava. A blusa servia para esconder marcas de automutilação nos braços. Sofrendo com ansiedade e depressão, não era a primeira vez que ela se feria. Dois anos antes, outro episódio havia ocorrido, só que o desfecho foi oposto. A reação da antiga empresa em que ela trabalhava deixou a situação ainda pior. Após uma crise de ansiedade durante o expediente, Heloísa foi levada ao hospital, quando descobriram as marcas nos braços. Ela recebeu atendimento imediato e foi encaminhada a um médico psiquiatra. Duas semanas depois, estava demitida.
“Aquilo me deixou muito mal. O que é que sou? Porque meus braços estão automutilados, porque têm cicatrizes, eu não sou uma pessoa legal? Foi bem pesado”, relembra.
No atual emprego, ela garante que o tratamento é outro. Semanalmente, faz acompanhamento com a psicóloga organizacional Alessandra Mendes e pode expor abertamente o que sente, sem medo de retaliação. O atendimento proporcionado pela empresa faz parte de uma série de iniciativas adotadas pelo setor de Recursos Humanos para melhorar o bem-estar dos cerca de 560 colaboradores.
Benefício em dobro
De acordo com Organização Mundial da Saúde (OMS), estratégias de acolhimento como essas são duplamente vantajosas. Enquanto os colaboradores ganham em qualidade de vida e se sentem melhor no ambiente de trabalho, a organização tem aumento de produtividade e redução de atrasos e faltas por parte dos funcionários.
A relação entre o cuidado com a saúde mental e benefícios econômicos foi consolidada em 2016, quando a OMS publicou um estudo na revista científica The Lancet Psychiatry mostrando que para cada dólar investido em prevenção e tratamento de depressão e ansiedade outros quatro dólares retornam como resultado das melhorias na saúde e capacidade de trabalho do paciente.
Mais recentemente outro estudo comprovou que custa bem caro às empresas não cuidar da saúde mental dos colaboradores. Um levantamento divulgado durante a pandemia da Covid-19 pela pesquisadora Sara Evans-Lacko, da London School of Economics, revelou que a queda de produtividade provocada pela depressão gera uma perda anual de 78 bilhões de dólares ao Brasil.
O economista Ismael Cittadin explica que as teorias econômicas contemporâneas já reconhecem que as condições de saúde física e mental dos trabalhadores têm forte impacto sobre o desenvolvimento econômico sustentável.
“Os macroeconomistas admitem que para um trabalhador ser produtivo, para ele ter capacidade de exercer uma função mais complexa, que agregue mais valor e, assim, gere produtos mais valiosos, ele precisa ter, além de uma boa formação, uma boa condição de saúde. Ele tem que estar apto fisicamente e mentalmente a exercer essa função. Sem isso, não há crescimento econômico sustentável”, argumenta.
Cuidar é incluir
Quando devidamente aplicado no meio organizacional, o conceito de saúde precisa levar em conta a diversidade das pessoas. Deve, portanto, estar conectado à ideia de inclusão.
A auxiliar de produção Jéssica Dal Moro, de 27 anos, também descobriu na Vanelise Confecções o valor de um acolhimento profissional diferenciado. Ela é surda e só se comunica pela Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com a ajuda da psicóloga da empresa Lays Jasper, que conhece a Libras e fez a tradução do depoimento, Jéssica diz que pela primeira vez está trabalhando em uma organização em que se sente verdadeiramente compreendida.
“Depois que o RH passou a ter alguém que entende a Libras, me senti muito mais feliz aqui dentro da empresa”, declara Jéssica.
Em experiências profissionais anteriores, ela conta que as pessoas tentavam conversar por meio da escrita, o que era bastante complicado, porque o modo como alguém surdo lê e escreve é diferente.
A psicóloga Lays afirma que a melhoria da comunicação facilita inclusive o atendimento em saúde. Semanalmente, uma médica do trabalho visita a empresa e, além de prestar assistência e acompanhar casos com atestado médico, está à disposição de qualquer colaborador que deseje uma consulta. A intenção é oferecer um atendimento mais humanizado.
“A médica vem para conversar com o colaborador que apresenta atestado, mas procura entender o que pode estar causando o problema. Além do estado físico, existe abertura para que ele possa falar sobre o que está acontecendo em casa. Às vezes, a pessoa está somatizando no trabalho uma dificuldade, porque talvez more sozinha e não tem a quem pedir ajuda”, exemplifica.
A gerente de RH da empresa, Juliane Dalsasso, trabalha há 16 anos com gestão de pessoas e nos últimos cinco anos tem notado um aumento significativo no afastamento de trabalhadores por motivos de saúde. Percebe, também, que a pandemia da Covid-19 afetou bastante a saúde mental dos trabalhadores. Por isso, considera fundamental que as organizações invistam cada vez mais no cuidado dos seus colaboradores, até porque existe muita dificuldade para preencher postos de trabalho.
“A gente não consegue encontrar mão de obra. Se nós não cuidarmos das pessoas que estão aqui, a empresa também perde e hoje mais de 500 famílias dependem desse negócio”, enfatiza.
Investimento em sustentabilidade
No início do ano que vem, a empresa vai inaugurar uma nova unidade fabril, também em Nova Veneza (SC), que promete ser referência na América Latina, já que atenderá aos princípios de uma das mais importantes certificações internacionais de sustentabilidade, a Leed – Leadership in Energy and Environmental Design – ou Liderança em Energia e Design Ambiental, em tradução livre.
Juliane explica que, como a empresa é signatária dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) para 2030, todos os projetos de expansão são idealizados nessa perspectiva. A nova fábrica, por exemplo, terá ambientes totalmente climatizados, com telhados verdes e baixo nível de exposição ao calor. Lâminas de água ajudarão a aumentar a umidade do ar e a exposição à luz natural. A construção possibilitará, também, aproveitamento de luz solar e de água das chuvas, além de contar com uma série de outras características de estrutura e design favoráveis à saúde e ao bem-estar dos colaboradores.
“Se não tivéssemos pensado no ODS 3, que tem a ver com promoção da saúde e bem-estar das pessoas, nós teríamos economizado na infraestrutura. Mas tudo isso serve para que o profissional se sinta bem, o que, obviamente, também vai resultar em maior produtividade”, assegura Juliane.
Macro e microambiente
Já existem inúmeras evidências ao redor do mundo de que benefícios ou prejuízos econômicos no campo do trabalho têm relação com fatores ambientais, como aponta o economista Ismael Cittadin.
“No Reino Unido, só a má qualidade do ar, que influencia na falta de motivação para o trabalho, é responsável por 15 bilhões de libras a menos no Produto Interno Bruto. Nos Estados Unidos, a perda chega a 38 bilhões de dólares”.
Cittadin lembra, ainda, uma pesquisa do início da década passada – e que permanece válida – segundo a qual 87% do tempo das pessoas é vivido em lugares fechados, inclusive dentro das empresas. Por isso, julga necessário que esses locais ajudem a promover o bem-estar.
“Boa parte das relações sociais, como amizades, e até relações afetivas, como casamentos, acaba surgindo no ambiente de trabalho. As pessoas passam a maior parte da vida com os colegas de trabalho, então, esse ambiente precisa ser confortável”, defende.
Mudança cultural
Mesmo que os dados revelem maior probabilidade de retorno positivo, o investimento na saúde dos colaboradores frequentemente é encarado como gasto e encontra resistência em muitos gestores. Mas parece estar em curso, ainda que lentamente, uma mudança cultural, principalmente em relação à saúde mental.
Segundo a psicóloga Letícia Zanini, que é mentora de negócios e de liderança estratégica, os líderes da atualidade precisam não apenas conhecer sobre comportamento, mas também identificar caminhos para que seus liderados consigam entregar resultados sem perder a saúde mental.
“Os dados no Brasil indicam que a saúde mental é uma temática que passa a ser estratégica em função do impacto que gera na vida das pessoas e nos resultados corporativos. Os líderes que estão atentos ao tema se destacam e mobilizam seus times para a promoção do autoconhecimento, das práticas de respiração, do exemplo e estímulo à comunicação não-violenta, dentre outras possibilidades que permitem às organizações lucrarem sem perder o foco no ser humano”, esclarece.
Convocação
Em junho deste ano, a OMS lançou sua maior revisão sobre saúde mental deste século, abrindo os olhos de lideranças globais para o tamanho do problema que a humanidade enfrenta. O relatório mostra que a saúde mental tem sido uma das áreas da saúde mais negligenciadas e com investimentos muito abaixo do necessário.
Segundo o documento, quase um bilhão de pessoas já viviam com algum transtorno mental em 2019, sendo que a pandemia aumentou esse índice em mais de 25%. Por isso, a convocação é para que governantes, profissionais de saúde, pesquisadores e acadêmicos da área, e toda a sociedade civil, incluindo as empresas, se engajem ainda mais nessa causa.
Para orientar as ações, está em andamento um Plano de Ação Integral de Saúde Mental baseado em três eixos a ser implementado até 2030. Embora todos os 194 Estados Membros da OMS tenham assinado o documento e se comprometido com as metas, os avanços ainda são considerados lentos pela OMS. A expectativa é que esse novo relatório com dados atualizados estimule a implementação de mais políticas e ações em prol da saúde mental em todo o mundo, promovendo não apenas a qualidade de vida e a defesa dos direitos humanos, mas o desenvolvimento socioeconômico global sustentável.